Um Dedo de Prosa
Crônicas

Negrita

Chegou em minha casa numa caixa de sapatos, há mais ou menos onze anos e alguns meses. Considerando a tenra idade, o mistério do balanço do carro e a viagem rumo ao desconhecido, sabia haver se metido em uma aventura. Inicialmente, mostrou apenas o ar assustado de quem nada entendia e chorou em algumas noites a separação de sua mãe e de seus irmãos. Mas rapidamente acostumou-se ao novo ambiente, sentindo ser o seu novo lar. Fez tudo o que um filhote esperto tem o direito de fazer, como, por exemplo, destruir literalmente vasos de plantas, baldes, bacias, roupas e até mesmo um óculos Di Paolo, adquirido em quatro nada suaves prestações. Meus óculos ficaram na história e a Negrita também.

Desde cedo nos mostrou suas qualidades, tais como indisciplina, energia em excesso, além de notável ferocidade quando se tratava da presença de algum semelhante seu ou inimigo natural, como gatos. No mais, era toda gentileza, tanto com os familiares como com qualquer estranho que se aproximasse, a ponto de roubarem-lhe a coleira no pescoço. A coleira, é claro, também ficou na história. Como todos de sua espécie, também escolheu o seu dono dentre os membros da família. A todos via com afeição e alegria, mas foi a mim que prestou vassalagem canina. Sempre fui requisitado pelos outros da casa para dar-lhe uma ordem de comando, só a mim obedecia. Isto sem surras ou qualquer outro meio ignóbil tantas vezes observado neste mundo cão. É certo que, muitas vezes, principalmente nos primórdios de nosso conhecimento, precisei persuadi-la com decibéis reconhecidamente agressivos aos seus tímpanos sensíveis. Sua mansidão era tamanha que se tornava incompreensível, uma cadela dobberman tão pacífica com as pessoas. Chegava a ser engraçado a existência de pessoas, crianças ou não, que por ela nutriam verdadeiro pavor, sentimento compreensível, porém injusto. Além de uma cunhada e alguns sobrinhos, o garoto do vizinho também demonstrava o seu terror, mas, nesse caso, com algum estilo ditado por sua precoce intelectualidade, referindo-se a ela como “criatura abominável”.

Sair com ela a passeio era um verdadeiro martírio. Possuía uma força imensa, utilizada para puxar-me em sentido contrário àquele por mim desejado..Saía cheirando todas as árvores, postes, moitas, muros e paralelepípedos, provavelmente marcas territoriais. Do mesmo modo, quando em tempo de vacina, era um verdadeiro “deus-nos-acuda”. Ela despendia todo o esforço possível para tentar avançar nos seus semelhantes independentemente do porte. Mesmo assim, obrigação é obrigação e, embora faltássemos com algumas, as vacinas foram todas tomadas, inclusive no Hospital Veterinário da UFMG, onde chegou a ser submetida a uma cirurgia contraceptiva. A propósito, foram quatro partos valentemente suportados sem a presença de nenhum macho para dar-lhe assistência, nem mesmo seu dono, que também é macho e satisfeitíssimo por haver nascido assim.

Das crias, as lembranças apontam apenas para quatro: Bonnie & Clyde, do primeiro; Ringo, do segundo; e Chimbica, do último. Despedi-me dela na véspera. Parece que estava adivinhando. Seus visíveis sinais de senilidade mostravam um quadro que evoluía cada vez mais rapidamente em direção ao fim reservado a todo ser que se move sobre a face da Terra. Mesmo assim, eu precisava levá-la ao veterinário e o teria feito se ela houvesse resistido mais um pouco. Afinal, eu havia programado tal visita justamente no dia seguinte ao de sua morte.

Sou muito descuidado com questões de saúde, inclusive e até principalmente da minha própria. Seria pretensioso da parte de uma cadela criar expectativas em torno disso. Por isso, foi muito bom para ela o fato de ter vindo ao mundo como animal irracional, pois assim foi embora em paz, sem saber que poderia (quem sabe?) ter esticado um pouquinho mais a vida, antes de esticar as canelas. Mas convenhamos que também teria sido possível (quem sabe?), uma sobrevida sofrida, com o coração cumprindo o papel de dar-lhe vida e os sentidos alterados. É sabido, inclusive, que a melhor caridade que se pode fazer a um animal é aplicar-lhe a eutanásia. No caso da Negrita, provavelmente teria ocorrido uma “eutanásia branca”. Um Ministro de Estado, saudoso para os humoristas deste país, chegou a afirmar: “cachorro também é ser humano”. Cachorro não é gente, embora às vezes pareça em alguns comportamentos, em alguns olhares. Negrita não era diferente, tanto que havia o costume de ser mencionada com nome e sobrenome completos, sobrenome de minha família, é claro. Por não ser gente, os canídeos recebem o nosso amor na forma das mais variadas eutanásias, exatamente para que não sofram. Ironicamente, quando se trata de nossos semelhantes, somos capazes de prolongar-lhes o sofrimento terminal, por mais insuportável que venha a ser. E isso, igualmente movidos pelo amor.

Quando cheguei em casa, encontrei meu filho com os olhos vermelhos de chorar. Assustado, perguntei-lhe o que tinha havido e, desculpe-me, Negrita, senti-me aliviado pela notícia. Afinal, era apenas uma cadela que havia morrido. Ao entrar na sala, duas de minhas filhas choravam abraçadas. Mas, na verdade, eu não tinha tempo para pensar em outra coisa senão em como livrar-me do corpo. Liguei para o Hospital Veterinário da UFMG, onde Negrita fora cobaia, por ficar mais em conta o custeio dos atendimentos, e tomei conhecimento da existência de um serviço funerário para animais. No caso de defuntos cães, a taxa era irrisória. Chegou então o momento de ir embrulhar o corpo de minha amiga para levá-la à sua morada definitiva. Ali, na penumbra, sozinho, contemplei o seu corpo sem vida, esticado como se dormisse, sereno, privilegiadamente em paz. Foi o suficiente para que eu desabasse. Chorei como criança, assim mesmo sofrido e sem vergonha alguma. Às vezes é duro ter um coração mole. A garganta se fecha e água brota dos olhos, como agora.

Minha mulher chegou em seguida, eu havia acabado de fazer o funesto embrulho. Também chorou. Em seguida, peguei minha amiga nos braços, coloquei-a no porta-malas do carro e levei-a em sua última viagem, desta vez sem caixa de sapatos. Mas mantendo o mistério, o balanço do carro e a viagem rumo ao desconhecido.

11 / Out / 2012
Danilo dos Santos Pereira
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