Um Dedo de Prosa
Crônicas

A desventura de Valdivino

Todos os dias, de segunda a sexta, a cena se repetia. Valdivino entrava na curva, pontualmente às 23h30. Cambaleante, engatava uma primeira e quando tentava puxar a segunda, o corpo fazia que ia, mas não ia. Cruzava as duas extremidades da rua de terra e a turma ali estacionada, naquela conversa fiada de fim de noite, não resistia e deixava fluir solene a gargalhada.

Nos primeiros tempos, figura ainda desconhecida da maioria dos moradores da vila, Valdivino fingia não escutar e assim ia, de primeira e de segunda até chegar em casa, sem ter, contudo, aterrado. Morava no fim da Rua Morro da Graça, à beira do Aeroporto Carlos Prates, havia pouco mais de um ano. Vestia-se como um inglês pobre: um terninho preto surrado de paletó ensebado e encurtado, que lembrava mais um daqueles uniformes de barnabé do serviço público tomar posse.

Trabalhava na noite. Acordava lá pelas quatro da tarde, vestia-se, pegava o ônibus para a cidade, descia na Av. Paraná esquina de Rua Carijós e seguia para a Rua Guaicurus. Lá, encontrava umas amigas, recebia a grana, ia ao trabalho e, às 23h em ponto, quando retornava, pegava o ônibus de volta pra casa de Dona Maurinha, onde morava de favor. Tal favor vinha da caridosa velhinha que, já com mais de 80 anos de luta, guardava pelo Valdivino certa gratidão: filho de uma antiga vizinha da Pedreira Padro Lopes, a quem Maurinha devia alguns favores, favores esses que ela vinha pagando há mais de 30 anos, quando a mãe de Valdivino falecera, deixando-lhe a incumbência de cuidar do seu querido filho temporão.

Valdivino era trabalhador. Além de explorar duas mulheres na Rua Guaicurus, trabalhava como contabilista em um cabaré nas imediações. Esse trabalho consumia um trecho de sua tarde e boa parte da noite. Aparecia lá, resolvia os problemas dos livros, do caixa e de toda a escrita, e fechava a noite com umas doses de bebidas boas.

Numa certa segunda-feira, dia bem azedo, vinha ele virando a Lorena para subir a Estevão de Oliveira às 23h30 em ponto. Fazia um frio intenso e a turma da esquina já “quentava fogo” numa fogueirinha improvisada com gravetos. Valdivino, nesse dia, tomara mais de uma; todas. Cambaleou de lá pra cá e não deu outra, a risaiada comeu solta. Neste dia, ele cismou que ia encarar aquele bando de moleques. Aprumou o corpo, freiou, firmou os cascos, pôs a mão esquerda na cintura, ergueu o braço direito em direção à turma e falou:

- O que que foi, porra? Tão mangando de eu? Olha que eu sô muito macho, hein!

A resposta veio num zum, zum, zum e risos descontraídos.

Valdivino foi enfezando, afinal, não era a primeira vez que isso acontecia e ele precisava pôr moral naquele bando de moleques. Resolveu falar mais alto:

- Aí não tem homem não?

Mais risos e nenhuma resposta. Ficou mais invocado, deslizou até o barranco do outro lado da rua e gritou:

- Aí só dá viado!

Ninguém ligou, mas as risadas aumentaram. Valdivino foi se aproximando da turma até ficar no clarão da fogueira. Um dos rapazes falou quase aos cochichos:

- Cuidado procê não se incendiar nessa fogueira. Valdivino não era de briga, mas estava perdendo o moral e, afinal, se ele não fizesse nada, aquela molecada não ia lhe dar sossego nunca mais. O negócio era partir pra briga e encher de porrada um daqueles fedelhos que o resto corria, pensou.

Valdivino não era desses que se podia chamar de Tarzan. Era franzino dentro de um paletó surrado, mas bem armado. Usava um cabelo tipo escovinha, amansado com brilhantina. A gravata ficava de lado, como uma língua de cachorro cansado. No entanto, era bem atrevido; encarara um guarda civil no “sapato” e na mão, como diziam. Vez por outra, enchia as mulheres da zona de porrada só para impor respeito mas, ali

no bairro, não tinha tradição de se meter em confusão. Uma vez, junto com o amigo Marlon Brando, tentou encarar o Pé de Chumbo e se deu mal.

Emputecido, chamou a turma pra briga. Ninguém se manifestou. Apontou um e chamou. Depois de mais de oito nãos, a voz do Turco, que nunca foi de enjeitar uma confusão, soou:

- Eu não brigo com cara de paletó...

Valdivino cambaleou, olhou o tamanho do rapaz, viu que dava pra fazer na mão e começou a tirar o paletó. Depois de alguns minutos com a mão agarrada no tubo do paletó ele finalmente conseguiu se ver livre daquela peça ensebada. Pediu para

que segurassem o paletó. Ninguém se interessou. Ele subiu no barranco que imitava um meio-fio, foi até a cerca, pegou o paletó e pendurou-o num dos mourões. Foi para o meio da rua e começou a arregaçar as mangas da camisa “volta ao mundo” rosa-choque. Ficou de cabeça baixa naquela operação e a turma, se divertindo em altas gargalhadas.

Assim que levantou a cabeça e olhou na direção da turma viu o Turco mijando no seu paletó. Lépido, como se estivesse sem nenhum álcool na cabeça, correu até a cerca, apanhou o paletó, sacudiu-o indignado e, sem nenhuma moral ou palavra, subiu a rua deprimido e em silêncio.

Foi a última vez que deram notícia do Valdivino no Jardim Montanhês.

12 / Jan / 2006
Osias Ribeiro Neves
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